regresso às origens

Enquanto me dirigia para assistir à Pastoral de Beethoven, recordei os tempos que comecei a ouvir este género musical. Às escondidas. Usurpava as cassetes do meu pai para ouvir no meu walkman Aiwa novinho em folha. Ninguém da minha idade escutava aquilo e eu, com receio de ser gozada, fazia-o sem ninguém saber. E o meu pai farto de saber do meu grande segredo...

Recordo as viagens que fazia para casa da minha avó materna, ao fim-de-semana, ao som daquela cassete em particular. Uma colectânea de luxo da Deutsch Grammaphon. A minha banda sonora preferida quando viajava para o meu refugio. Fugia para lá sempre que podia ou me deixavam.
Apesar da curta distância, uns míseros quilómetros de minha casa, lá sentia-me noutro mundo. Imaginava-me a Heidi. Lá onde era livre. Sentia-me bem, era feliz. Sentia-me eu. Longe do colégio que me obrigavam a frequentar, dos colegas empertigados com quem era obrigada a conviver, dos espartilhos que me obrigavam a usar e onde me sentia sempre um peixe fora de água.

Recordo a casa da minha avó. Antiga. Não, antiga, não. Era mesmo velha, agora vejo isso. Ainda agora, depois de ter sofrido alguns melhoramentos, não deixa de ser uma casa velha.
Recordo subir aquelas escadas altas de pedra maciça e escutar o assobio abafado da minha avó. Aquele assobia era-lhe tão característico. Ao entrar na cozinha, com a mochila da roupa, quase maior que eu, às costas, lá estava ela: ou de costas para mim, encostada à banca, a lavar a loiça, ou na máquina de costura, a remendar a roupa dos meus tios.
Antecipava o "raios o partira" que ela iria dizer quando me visse a chegar, de surpresa. E do seu abraço forte, tão forte.
A minha avó era uma mulher de fibra, de garra, de carácter, de fé. Criou oito filhos a ferro e fogo, com todas as dificuldades do mundo. Nunca se queixava de nada. Apreciava as boas coisas da vida. "O que se leva desta vida é o que se come e o que se bebe", dizia tantas vezes. Adorava música! Fosse ouvir a banda de música, uma noite de fados ou umas cantigas à desgarrada. E adorava passear e viajar, nem que fosse até à feira da Póvoa.
Tinha sido dura com os filhos mas com os netos era doce como melaço.

Recordo de ir para o rio com ela. A bacia da roupa suja na cabeça, amortecida por um pano velho. Lembro o rio, as outras lavadeiras, o ar puro e fresco, o cheiro intenso e purificador a eucalipto. A roupa a corar em cima da erva. O cheiro do sabão. Ainda hoje o cheiro a roupa lavada é dos meus odores preferidos. Mas não o cheiro a detergente mas o cheiro a sabão, da roupa lavada à mão.
Recordo a minha avó ao meu lado, a lavar os lençóis. As suas mão envelhecidas pelo trabalho duro e vermelhas pela exposição longa à agua gelada. E eu igualmente atarefada a lavar as rodilhas. Sentia-me gente ali no meio das lavadeiras e donas de casa.
Lembro de deixar cair o sabão propositadamente ao rio, vezes sem conta. Uma desculpa para me poder molhar à vontade. Lembro, como se fosse hoje, a água gelada a provocar-me calafrios bons na pele eriçada.
Recordo andar a brincar sozinha pelas margens do rio. A apanhar flores, a fazer colares e coroas com elas. Lembro andar atrás dos grilos. Lembro andar à procura do cuco que teimava em não se mostrar.
Recordo o regresso a casa, já estafada mas saltitante à volta das saia da minha avó.
Já em casa, o trabalho continuava. Estender a roupa e tratar dos animais. A lavagem para os porcos, o milho para as galinhas.
Depois o banho numa bacia, ao ar livre, no quintal e a água aquecida nos tachos.
Seguia-se o jantar. A confusão à mesa, já com os meus tios e as minhas tias. O coelho estufado com cenoura e ervilhas que nunca provei igual. E, em dias de festa, o cozido feito no fogão a lenha. Não havia melhor. Ainda não há melhor que aquele feito pela minha avó. A gasosa que ela comprava para mim, sabe-se lá com que sacrifício. "Toma, filhinha!".
Não há nada como ser primeira neta, primeira filha, primeira sobrinha.

Recordo o sofá onde me sentava com as minhas tias, depois de jantar. Apertadinhas e a manta nas pernas. A luta para me deixarem ficar a ver televisão com elas até adormecer. Ou o deitar-me na cama no meio delas e das cantigas de embalar que me cantavam ou as histórias que me contavam. Talvez o meu fascínio por histórias venha daí.

No dia seguinte, de manhã, recordo o frio que era ter de sair para ir ao quarto de banho e da água gelada do poço ao lavar os dentes.
O leite fresco que ia buscar com a minha tia à leiteira, o Nesquik comprado para mim e as sopas de pão.
A ida à missa com a minha avó, às sete da manhã. A geada nos campos branquinhos. O regresso a casa e às lides do campo. Os tomates, as cenouras, as ervilhas, as couves, as batatas. As árvores de fruto: o diospireiro, o meu preferido, continuo a adorar dióspiros, principalmente aqueles picados pelos pássaros, e a ameixoeira.
E eu sempre atrás da minha avó. E a paciência que ela tinha para mim. Infinita.

Lembro de brincar ao Carnaval. As máscaras preparadas à pressão e os desfiles. Os Entrudos a passarem e o enterro do João. Como a minha avó adorava o Entrudo. E eu continuo a adorar.
Ela tinha cada expressão!... Além do "raios o partira" já mencionado, o "abrenúncio sacramento". Já ninguém utiliza essas expressões. Mas também, já não há mulheres como ela.
Eu cresço de cada vez que me dizem que tenho parecenças com ela. Sejam elas físicas ou de carácter.

Recordo as vindimas, as matanças do porco e os Magustos. Ir buscar a caruma ao monte. O vinho doce. O cheiro do vinho da pipa, na cozinha de baixo, onde eu ia encher a infusa para os meus tios.
E a família sempre reunida.
Ainda hoje se reúne, religiosamente, aos domingos, naquela casa.
A família, que é e será sempre o meu porto seguro.

E esta sou eu.
Isto é tudo o que me faz verdadeiramente feliz. Tudo o resto são máscaras, escudos, acessórios, maquilhagem que uso e que, por vezes, me esqueço de retirar.

O concerto deve ter terminado porque toda a gente se levanta para aplaudir.
Não faço a menor ideia como foi o concerto tecnicamente. Para mim, foi dos melhores a que assisti e valeu cada cêntimo pago pelo bilhete, porque me levou de volta à minha essência...

Sem comentários: